Peixe Peixoto
- isoladosproj
- 2 de jun. de 2020
- 3 min de leitura
Por Daniel Castro.
Dentro d’água, ele desbrava a vida. A determinação é de um tubarão
branco. Desde muito novo, mais precisamente aos seis anos, é obstinado pelo
amor da braçada e do movimento síncrono das pernas. H20 é a fórmula que
propicia o elixir da vida humana, mas Lucas foi mais além. Fez dela o seu lar e
sucesso. Sem barbatanas, trouxe medalhas de competições internacionais
para casa. Que longa trajetória tem pela frente.
“Eu amo, mas me estressa” - o ônus de quem trabalha com aquilo que
traz realização. Em seguida, um “sou privilegiado”. O cotidiano omite, muitas
vezes, a noção de realidade. A ambição é fator crucial na vida para qualquer
êxito, mas ela também tem uma sombra: a bolha. A zona de conforto troca
juras de amor com a cegueira. E não. Não é exclusividade do garoto de 19
anos. Aliás, de garoto, só a idade numérica. A voz encorpada e o perfil
remontam um homem experiente. Talvez, seja por isso que ele sobe em cima
do muro para enxergar a vastidão do horizonte com suas tamanhas
imperfeições. Toma essa atitude num momento emblemático de isolamento
social. “Eu ficava puto quando não funcionava bem o aquecimento da piscina
que eu treinava. Agora, treino na piscina do meu prédio, água totalmente
gelada e 10 vezes menor”. O lamento de quem não vê nem os amigos, nem
avós é duro e sincero.
De Porto Alegre para Minas Gerais. Na pandemia, do pão de queijo ao
chimarrão. Por tempo indefinido, salário reduzido e a nova – ou velha – vida
com os pais. O gasto menor com supérfluos ajuda a manter as contas em dia.
A boa ação da dona do apartamento que Lucas aluga, reduzindo o valor do
aluguel, também alivia. O que mudará depois que isso passar? Para ele, a
resposta é curta: empatia. “Não só na questão de saúde e doença, mas pensar
mais no próximo de maneira geral”.
Jornalistas, antes de trazerem respostas, fazem perguntas. Se for isso
que restará de nós, haveria então um amanhã mais bonito nos aguardando
pós-pandemia?
A convicção de Lucas, armada de esperança, diz que sim. Para dispor
de confiança, é indispensável um certo equilíbrio emocional. A terapia que ele
desenvolve desde os 12 anos deixa as digitais na fé emanada. “Comecei por
um motivo e acabei continuando por outros”. A separação dos pais foi o berço.
Bem resolvida a questão, decidiu persistir pela ansiedade intensa que tinha
mais novo quando ia nadar. Aos 15, curou o bloqueio mental que o impedia de
executar o que vinha treinando a duras penas. Na quarentena, entretanto,
sucumbiu a uma forte crise. O tempo ocioso com doses de pensamentos
destrutivos é a receita certa do veneno. “Há uns três dias me deu uma
ansiedade muito forte. Lembrei de como estava minha vida lá em Minas. Agora,
estou aqui, perdi o ritmo...”. Como na música, o ritmo da rotina dita o compasso
melódico da vida. Se é assim para ele, seguro emocionalmente, como devem
estar os mais desequilibrados?
Em algumas falas mais mansas, o jovem nadador deixa transparecer um
conjunto antagônico de sentimentos entre a preocupação e a gratidão. O
primeiro pelos seus familiares e amigos; o segundo por não ter perdido nenhum
deles para o Covid-19. “A vida é frágil”. Até demais, Lucas. A vida é um
amontado de segundos que se sucedem de maneira desalinhada. Diante do
próximo instante, tudo pode desabar. Na fragilidade, todavia, forja-se a força
inesperada, a motivação desconhecida. Nela, reencontramos o Norte e o
motivo de sair da cama. Os dias são mais coloridos quando se luta por um
sonho. “Ir para as olimpíadas e ser medalhista.” É isso que move o mundo do
gaúcho meio mineiro.
Do que vale a vida sem a liberdade? Nas entrelinhas, Lucas deixa
escapar a saudade do simples. A conversa com os amigos, o cinema, o ar puro
da rua. Bênçãos de uma vida livre. Agora, restrita. No fim, os maiores bens são
invisíveis. Não os tocamos, mas padecemos na ausência. A felicidade, o
oxigênio e assim por diante. “A gente não tem controle do que está
acontecendo, então é preciso se adaptar”. O desabafo em uma simples frase
do diálogo, mas que remonta a história do ser-humano.
A capacidade de adaptação foi o que nos trouxe até aqui enquanto
espécie. Pelo menos, é assim que compreendeu Darwin através da seleção
natural. Adaptar para sobreviver. É nossa única saída. Dando as mãos,
confiando no sol após a tempestade. Aqueles e aquelas que não jogaram a
toalha são nossos líderes nesse momento. É o caso do “peixe”. Peixoto. Lucas
Peixoto.
Comments